quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

ODE MARÍTIMA...

Um dos melhores poemas de Fernando Pessoa!


Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

4 comentários:

  1. Ah conheço muito bem. Um poema belíssimo.
    Obrigada,António, pela partilha de coisas bonitas. F. Pessoa diz aquilo que nós às vezes sentimos e não conseguimos dizer.
    xx

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  2. Ode
    Versos de Fernando Pessoa;
    Grande poder de imaginação e sabedoria.

    "Para ser grande, sê inteiro: nada
    teu exagera ou exclui.
    Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
    no mínimo que fazes.
    Assim em cada lago a tua toda
    brilha, porque alta vive"

    Ode, faz-me lembrar a lenda de Odemira, algures li, não sei onde, Era um fidalgo, cujo o seu guarda-costas se chamava Ode. Quando o fidalgo ir ter com a donzela, a sós no quarto, dizia o fidalgo, Ode mira, cujas duas palavras unidas deram o nome a Vila de Odemira.

    Boa noite para ti amigo António, um abraço,
    Eduardo.

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